Casével foi desde sempre uma freguesia essencialmente agrícola, aliás como se pode visualizar na sua heraldica. A produção de trigo assumiu sempre uma posição cimeira no conjunto da economia casevelense, não só para consumo interno como para venda. Foi, até aos anos 60, a base do sustento de muitas famílias que se dedicaram ao trabalho agrícola e uma fonte de recrutamento de mão-de-obra, não só para a ceifa como também para a debulha.
O trabalho nos tempos mais recuados era feito na eira por animais que repisavam o trigo durante horas, até ficar separado da palha.
Os trabalhos na eira davam emprego a muitos jovens que demandavam as casas dos maiores proprietários, como também a muitas mulheres. E por altura das ceifas e debulhas havia festa com cantos e bailaricos.

Em volta dos montes e de roda das aldeias, buscavam-se lugares planos, com o terreno firme, de preferencia rochoso, onde se faziam as eiras. As primeiras eram de planta circular, maiores ou menores, conforme a abastança e o tamanho da corda que prendia as mulas, "bestas", forçadas a andar de roda vezes sem fim para pisar o cereal, a fava e o grão por debulhar
Tinham de ficar em sitio descampado para melhor apanharem o vento e com a orientação devida, para não encherem as casas de palhuço quando as forquilhas de pau se levantavam ritmadas, oferecendo a colheita à maré.
Depois das debulhas feitas à custa de braço, entrou em cena a tecnologia. Surgiram as primeiras máquinas debulhadoras movidas à força do vapor, verdadeiros encantos de potência e desembaraço que pelo modo como aliviaram a faina, ganharam a simpatia das gentes. Eram miradas na passagem e admiradas no desempenho.
Tornaram-se vultos de ferro e simpatia, motivos de admiração e de algum afecto, a pontos de serem designadas por um nome próprio. Anos depois, vieram as debulhadoras fixas mais ligeiras, de cor amarela no seu tabuado.
Ceifado o pão e depois de enroleirado, era carregado para as ditas eiras. Só para as maiores que se enchiam de medas, dispostas conforme a variedade do cereal e segundo a dimensão da labuta.
Nas aldeias, havia debulhas nos largos e na eira da máquina, para onde os agricultores transportavam em carros, reboques e carrinhas a pequenez das suas colheitas.
Mas as debulhas tinham grande encanto. Faziam soltar o sortilégio da abastança mesmo que esta fosse curta. Representavam o momento efectivo da devolução pela terra, em forma de semente, do trabalho nela investido em canseiras múltiplas.
Corriam nas conversas as finezas e as desgraças de todas as searas. Este fundiu bem,"quantas sementes deu", ou "aquele nem dobrou a semente". Foi por causa da chuva, porque não espigou, pegou-lhe a aforra, não foi bem tratado, a sementeira traçou-lhe logo um mau fim.
E dantes os anos, muitos anos à fio, eram ruins. Feitas as contas, não sobrava nada.
Mas apesar disso, as debulhas tinham o tal sortilégio de provocar encanto e de desenvolver uma mística de alguma paixão bucólica.
Esperava-se com frenesim a chegada da máquina e contavam-se os dias que faltavam para a ver aproximar-se, lentamente, bamboleando-se, de tombo em tombo, pela estrada velha. Lá vinha toda aquela arrearia, toda aquela gente, todo o movimento que o pessoal da máquina,durante dias, gerava na freguesia sempre sossegada.
Encostavam a debulhadora à primeira meda, descarregavam a torgia, acilhavam, travavam os rodados de ferro, preparavam tudo com o preceito sabido.
Diante da máquina, à distância da correia de lona grossa, tomava posição o tractor que depois, dias a fio, fazia zunir as engrenagens. Mais afastada ainda, ficava a barraca, melhor dizendo, um toldo, feito de sacas esticadas atadas nas extremidades de quatro paus ou varolas. O bastante para fazer sombra. Juncava-se o chão para dar fresquidão e por ali ficavam as quartas de água e uns banquinhos. tipo mochos, onde o pessoal vinha descansar quando era rendido.
O tractorista, "o mestre da máquina" andava por ali, para observar o maquinismo. O saqueiro, aparava a semente, despejava os desperdícios, contava os sacos e tirava a maquia. Lá em cima, mais perto do sol ,andavam os fiscaleiros e os alimentadores, tentando atafulhar a goela larga da debulhadora. Mas ainda cá em baixo, mais perto do inferno, sofria o homem da moínha, coberto de pó, enroupado com sacas, com um lenço a tapar a cabeça, empapado em suor, aparando os restos que o fagulheiro deitava.
À sombra do toldo juntavam-se também os cães do monte, um gato ou um galo que o pessoal da máquina gostava de trazer.
Como eles, os moços procuravam o fresco do verde. Na hora do descanso os homens descansavam e saciavam as goelas secas bebendo "uns copos" ou umas "cucas" que tinham sido postas a refrescar no fundo de um poço. De quando em vez, feita certa conta de sacos, o saqueiro ou o mestre tocava um apito para a rendição.
Embora a modernização tenha contribuído para a diminuição do emprego, a produção de trigo aumentou até aos finais dos anos 60 e meados de 70. Épocas houve em que no último dia da ceifa levavam bandeiras empenachadas com ramos de espigas loiras.
Seco e arrumado o trigo, o lavrador garantia o seu sustento. E todas as semanas o moleiro batia-lhe à porta para levar o cereal. E todas as semanas o pão de trigo, que era um luxo, saía do forno, quente e bem cheiroso para regalo da família.
Vivi todas estas situações atrás descritas porque o meu saudoso pai, Júlio Rodrigues, "bilharó", foi durante muitos anos "mestre da máquina". Primeiro acompanhei toda a envolvência das debulhas em Casével e arredores "na desportiva", com as brincadeiras de criança, pois ia levar-lhe também as refeições. Mais tarde, já foi mais "a doer", a trabalhar, a cortar arame para fazer o fardos,"ai que calor e pó!", nas Curvaceiras e Paialvo, freguesias do concelho de Tomar.
Um momento que suportei com mais dificuldade foi quando o meu pai perdeu o indicador da mão direita ao ser cortado no "caracol" da máquina. Ele achou inadvertidamente, que podia resolver uma avaria mesmo com a máquina a trabalhar!!
Foram tempos muito difícieis e trabalhosos, mas que apesar de tudo guardo com muito carinho e nostalgia.
Sem comentários:
Enviar um comentário