Ecos de Casével

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Jornal digital de Casével

domingo, 20 de maio de 2012

AS DEBULHAS

Casével foi desde sempre uma freguesia essencialmente agrícola, aliás como se pode visualizar na sua heraldica. A produção de trigo assumiu sempre uma posição cimeira no conjunto da economia casevelense, não só para consumo interno como para venda. Foi, até aos anos 60, a base do sustento de muitas famílias que se dedicaram ao trabalho agrícola e uma fonte de recrutamento de mão-de-obra, não só para a ceifa como também para a debulha.
O trabalho nos tempos mais recuados era feito na eira por animais que repisavam o trigo durante horas, até ficar separado da palha.
Os trabalhos na eira davam emprego a muitos jovens que demandavam as casas dos maiores proprietários, como também a muitas mulheres. E por altura das ceifas e debulhas havia festa com cantos e bailaricos.

Mas este sistema de trabalho foi desaparecendo com o aparecimento das debulhadoras. Não tenho dados precisos para a chegada destas máquinas a Casével, mas há notícias para algumas freguesias rurais nos finais dos anos 30. Um testemunho da época refere que uma debulhadora pode “debulhar trinta ou quarenta moios num dia. Esta abundância corresponde a trinta ou quarenta eiras paralisadas com os seus cento e cinquenta ou duzentos empregados, isto só num dia".
Em volta dos montes e de roda das aldeias, buscavam-se lugares planos, com o terreno firme, de preferencia rochoso, onde se faziam as eiras. As primeiras eram de planta circular, maiores ou menores, conforme a abastança e o tamanho da corda que prendia as mulas, "bestas", forçadas a andar de roda vezes sem fim para pisar o cereal, a fava e o grão por debulhar
Tinham de ficar em sitio descampado para melhor apanharem o vento e com a orientação devida, para não encherem as casas de palhuço quando as forquilhas de pau se levantavam ritmadas, oferecendo a colheita à maré.
Depois das debulhas feitas à custa de braço, entrou em cena a tecnologia. Surgiram as primeiras máquinas debulhadoras movidas à força do vapor, verdadeiros encantos de potência e desembaraço que pelo modo como aliviaram a faina, ganharam a simpatia das gentes. Eram miradas na passagem e admiradas no desempenho.
Tornaram-se vultos de ferro e simpatia, motivos de admiração e de algum afecto, a pontos de serem designadas por um nome próprio. Anos depois, vieram as debulhadoras fixas mais ligeiras, de cor amarela no seu tabuado.
Ceifado o pão e depois de enroleirado, era carregado para as ditas eiras. Só para as maiores que se enchiam de medas, dispostas conforme a variedade do cereal e segundo a dimensão da labuta.
Nas aldeias, havia debulhas nos largos e na eira da máquina, para onde os agricultores transportavam em carros, reboques e carrinhas a pequenez das suas colheitas.
Mas as debulhas tinham grande encanto. Faziam soltar o sortilégio da abastança mesmo que esta fosse curta. Representavam o momento efectivo da devolução pela terra, em forma de semente, do trabalho nela investido em canseiras múltiplas.
Corriam nas conversas as finezas e as desgraças de todas as searas. Este fundiu bem,"quantas sementes deu", ou "aquele nem dobrou a semente". Foi por causa da chuva, porque não espigou, pegou-lhe a aforra, não foi bem tratado, a sementeira traçou-lhe logo um mau fim.
E dantes os anos, muitos anos à fio, eram ruins. Feitas as contas, não sobrava nada.
Mas apesar disso, as debulhas tinham o tal sortilégio de provocar encanto e de desenvolver uma mística de alguma paixão bucólica.
Esperava-se com frenesim a chegada da máquina e contavam-se os dias que faltavam para a ver aproximar-se, lentamente, bamboleando-se, de tombo em tombo, pela estrada velha. Lá vinha toda aquela arrearia, toda aquela gente, todo o movimento que o pessoal da máquina,durante dias, gerava na freguesia sempre sossegada.
Encostavam a debulhadora à primeira meda, descarregavam a torgia, acilhavam, travavam os rodados de ferro, preparavam tudo com o preceito sabido.
Diante da máquina, à distância da correia de lona grossa, tomava posição o tractor que depois, dias a fio, fazia zunir as engrenagens. Mais afastada ainda, ficava a barraca, melhor dizendo, um toldo, feito de sacas esticadas atadas nas extremidades de quatro paus ou varolas. O bastante para fazer sombra. Juncava-se o chão para dar fresquidão e por ali ficavam as quartas de água e uns banquinhos. tipo mochos, onde o pessoal vinha descansar quando era rendido.

O tractorista, "o mestre da máquina" andava por ali, para observar o maquinismo. O saqueiro, aparava a semente, despejava os desperdícios, contava os sacos e tirava a maquia. Lá em cima, mais perto do sol ,andavam os fiscaleiros e os alimentadores, tentando atafulhar a goela larga da debulhadora. Mas ainda cá em baixo, mais perto do inferno, sofria o homem da moínha, coberto de pó, enroupado com sacas, com um lenço a tapar a cabeça, empapado em suor, aparando os restos que o fagulheiro deitava.
À sombra do toldo juntavam-se também os cães do monte, um gato ou um galo que o pessoal da máquina gostava de trazer.
Como eles, os moços procuravam o fresco do verde. Na hora do descanso os homens descansavam e saciavam as goelas secas bebendo "uns copos" ou umas "cucas" que tinham sido postas a refrescar no fundo de um poço. De quando em vez, feita certa conta de sacos, o saqueiro ou o mestre tocava um apito para a rendição.
À noite, depois da ceia, ia-se dormir na eira, ao relento, embrulhados na palha caso refrescasse.
Embora a modernização tenha contribuído para a diminuição do emprego, a produção de trigo aumentou até aos finais dos anos 60 e meados de 70. Épocas houve em que no último dia da ceifa levavam bandeiras empenachadas com ramos de espigas loiras.
Seco e arrumado o trigo, o lavrador garantia o seu sustento. E todas as semanas o moleiro batia-lhe à porta para levar o cereal. E todas as semanas o pão de trigo, que era um luxo, saía do forno, quente e bem cheiroso para regalo da família.
Vivi todas estas situações atrás descritas porque o meu saudoso pai, Júlio Rodrigues, "bilharó", foi durante muitos anos "mestre da máquina". Primeiro acompanhei toda a envolvência das debulhas em Casével e arredores "na desportiva", com as brincadeiras de criança, pois ia levar-lhe também as refeições. Mais tarde, já foi mais "a doer", a trabalhar, a cortar arame para fazer o fardos,"ai que calor e pó!", nas Curvaceiras e Paialvo, freguesias do concelho de Tomar.
Um momento que suportei com mais dificuldade foi quando o meu pai perdeu o indicador da mão direita ao ser cortado no "caracol" da máquina. Ele achou inadvertidamente, que podia resolver uma avaria mesmo com a máquina a trabalhar!!

Mais tarde aparecem as ceifeiras-debulhadoras e as debulhas nas eiras torna-se mais reduzida.
Foram tempos muito difícieis e trabalhosos, mas que apesar de tudo guardo com muito carinho e nostalgia.

 


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